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Pepe Mujica: “Aqui enxergamos a hipocrisia.”

12 de março de 2014

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Em 2013, Uruguai ganhou as páginas do mundo todo ao legalizar o aborto, o casamento gay e a maconha. Mesmo assim, o presidente mantém simplicidade e rejeita o status de celebridade: “Eu não sou nada, sou um camponês com senso comum.” Segundo ele, o país apenas respondeu à realidade: “Aplicamos um princípio muito simples: reconhecer os fatos.”

Via Brasil 247

Com um estilo de vida extremamente para simples para o um chefe de Estado, José Pepe Mujica ganhou as páginas do mundo todo ao legalizar, em um só ano, o aborto, o casamento gay e a maconha no Uruguai.

Em entrevista a O Globo, ele rejeita o status de celebridade: “Eu não sou nada, sou um camponês com senso comum”. Diz que o Uruguai apenas respondeu à realidade: “Aplicamos um princípio muito simples: reconhecer os fatos… Aqui enxergamos a hipocrisia”. Leia outros trechos:

Maconha

Não vai existir o turismo da maconha. A decisão tomada não tem nada a ver com esse mundo boêmio. É uma ferramenta de combate a um crime grave, o narcotráfico, é para proteger a sociedade.

Austeridade

Pretende ser um ato de protesto. Na república, ninguém é mais que ninguém, começando pelo governante.

Protestos

As sociedades não mudam por causa de grandes homens, mudam quando os protestos se organizam, têm disciplina e métodos de longo prazo. Temos de revalorizar o papel da política.

Copa

O futebol nos anos 50 estava mais equilibrado na região: agora é quase impossível para o Uruguai – um país de 3 milhões de pessoas – ganhar um campeonato do mundo. Mas ninguém pode nos proibir de sonhar.

Entrevista com Fernando Haddad: “A Prefeitura estava tomada por corrupção.”

7 de fevereiro de 2014
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Prefeito de São Paulo diz que governa “para quem mais precisa do serviço público”.

Via Blog do Kennedy

Ao “10 Perguntas”, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, diz que “a máquina pública [da capital paulistana] estava tomada por esquemas de corrupção”. Ele fez a afirmação ao responder à pergunta 2, que questionava se ele havia comprado brigas com muitos setores ao mesmo tempo e se isso era responsável pela baixa avaliação do seu governo nas pesquisas. “Não gostaria de passar meus quatro anos sendo mais um prefeito.” Afirma que comprou mais brigas quando era ministro da Educação. Na pergunta 1, diz que sua prioridade é governar “para quem mais precisa do serviço público” e que São Paulo vive uma “crise financeira há 20 anos”, o que a deixa sem capacidade de investir o necessário para atender demandas. Na pergunta 3, nega que a presidente Dilma Rousseff ou o ex-presidente Lula tenham feito pressão para ele suavizar eventual investigação de corrupção da administração anterior, de Gilberto Kassab (PSD), aliado do PT no plano federal.

Pergunta 1 – “São Paulo vive crise financeira há 20 anos”

Pergunta 2 – As batalhas de Haddad

Pergunta 3 – Kassab, Dilma e Lula

São Paulo não vai reajustar a tarifa de ônibus em 2014

O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, diz que não está no “planejamento reajuste neste ano” da tarifa de ônibus. Ele dá essa resposta na pergunta 4, quando defende que a municipalização da Cide, um tributo federal, seja destinada a financiar o transporte público no país. Haddad acredita que, por ser ano eleitoral, há chance de essa proposta vingar para atender a demandas do eleitorado. “Se não acontecer neste ano, vai ser muito difícil acontecer.” Na pergunta 5, defende a mudança do índice de correção da dívida paulistana com a União e de mais 175 municípios, onde vivem um quarto da população. Ele compreende a dificuldade do governo federal para mudar o índice sem criar turbulência econômica. Acha necessário explicar ao mercado que não se trata de “irresponsabilidade fiscal”. Afirma ser “o contrário”. Na visão do prefeito, seria um gesto de “responsabilidade federativa”. Na questão 6, diz que a Polícia Militar lhe deu relatos de queda da criminalidade na Cracolândia após o início da Operação Braços Abertos. Considera superada a crise com o governo do Estado pela “lamentável” ação recente da Polícia Civil na Cracolândia. Afirma que esse evento “não foi capaz de quebrar o laço de confiança” entre usuários e a Braços Abertos.

Pergunta 4 – Não haverá reajuste de tarifa de ônibus em 2014

Pergunta 5 – Dívida da Prefeitura de São Paulo

Pergunta 6 – Operação Braços Abertos

“É tarefa do PT, na eleição, criticar Alckmin.”

Ao “10 Perguntas”, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, responde à crítica do PT de que ele tem proximidade excessiva com o governador Geraldo Alckmin (PSDB/SP) e de que deveria se afastar do tucano. Segundo ele, a tarefa de criticar não cabe a ele, prefeito, mas ao PT e ao candidato do partido, Alexandre Padilha. Também diz que o momento propício de criticar o governador será no horário eleitoral, na reta final da eleição. Na questão 9, Haddad declara que o PT “não fez oposição muito vigorosa ao governo Kassab”, mas, na campanha em que ele foi candidato, teve a capacidade de “marcar diferenças”. Como administradores, Haddad diz que ele e Alckmin têm de se entender “para o bem da população”. Se houver briga, diz, “o mais pobre é que vai pagar a conta”. Na pergunta 8, conta que sabia que haveria desgaste com a decisão de priorizar o transporte público, com criação de mais faixas exclusivas. “Não há alternativa a isso.” Na questão 7, avalia que as polícias do país precisam mudar para lidar com os protestos. “Nós não temos forças de segurança preparadas para a nova realidade.” Na questão 10, fala das marcas do seu governo e da gestão Dilma. Sobre o governo federal, diz ser difícil separar as administrações Lula e Dilma. A respeito do seu primeiro ano como prefeito, destaca reforma educacional, medidas na área da saúde e de transporte e a operação “Braços Abertos”.

Pergunta 7 – Polícia e repressão a protestos

Pergunta 8 – Transporte público em São Paulo

Pergunta 9 – Resposta à pressão do PT para se afastar de Alckmin

Pergunta 10 – Marcas dos governos Haddad e Dilma

***

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João Pedro Stédile: “O Brasil não será democrático se não democratizar a terra.”

22 de janeiro de 2014

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Roldão Arruda em seu blog e lido no Portal MST

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, completa trinta anos neste mês de janeiro. Sua criação foi formalizada durante um encontro realizado em Cascavel, no Paraná, entre 20 e 23 de janeiro de 1984, com a presença de quase oitenta pessoas, de diversas partes do País.

Entre elas encontrava-se João Pedro Stédile, que havia começado a participar de ações em defesa da reforma agrária por meio da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada à Teologia da Libertação.

Na entrevista abaixo, Stédile, que faz parte da coordenação nacional do MST, analisa algumas das principais mudanças ocorridas em três décadas e as perspectivas do movimento.

Ele afirma que defensores da reforma agrária são minoria no governo da presidente Dilma Rousseff, que estaria privilegiando cada vez mais o agronegócio. Na avaliação dele, é uma política errada, uma vez que o agronegócio promove a concentração de terras e “dá lucro para alguns, mas condena milhões à pobreza”.

O MST surgiu numa conjuntura muita diferente. O Brasil era mais rural, o agronegócio estava menos estruturado, a produção de alimentos era precária, os índices de pobreza rural e urbana eram mais altos. De lá para cá, o agronegócio se tornou altamente competitivo, a produção de alimentos cresceu e o Brasil é apontado como uma potência mundial. Faz sentido continuar insistindo na bandeira da reforma agrária?

A reforma agrária está na ordem do dia como necessidade para construirmos uma sociedade democrática e ter o desenvolvimento social. A terra é um bem da natureza e todos os brasileiros que quiserem trabalhar na terra tem esse direito. Não é justo nem democrático que a propriedade da terra esteja cada vez mais concentrada. Em torno de 1% dos proprietários controlam metade de todas as terras. E agora, pior, estão entregando a propriedade para empresas estrangeiras em detrimento das necessidades do povo. O Brasil nunca será democrático se não democratizar o acesso à terra, para que as pessoas tenham trabalho, renda e dignidade.

Na sua avaliação, o agronegócio não contribui para o desenvolvimento do País?

O agronegócio é uma falácia. É um modelo de produção que interessa aos grandes fazendeiros e às empresas transnacionais que controlam o comércio mundial. Nos último dez anos tivemos uma enorme concentração da propriedade da terra e da produção agrícola. Cerca de 80% das terras são utilizadas apenas para soja, milho, cana, pasto e eucalipto. Tudo para exportação. É um modelo que dá lucro para alguns, mas condena à pobreza milhões. Veja o caso do Mato Grosso, tido como modelo: mais de 80% dos alimentos consumidos pelo povo dali têm que vir de outros Estados. Nós temos 40 milhões de brasileiros que dependem do Bolsa Família para comer e 18 milhões de trabalhadores adultos que não sabem ler. Foram fechadas 20 mil escolas no meio rural e os índices de pobreza não diminuíram. Essa é a consequência do agronegócio.

A maioria da população tem uma imagem favorável do agronegócio.

Ela pode até apoiar, enganada pela propaganda permanente. As consequências perversas do agronegócio atingem a toda população, quando destrói o meio ambiente e altera o clima até nas cidades, quando só produz usando venenos. Esses venenos destroem a biodiversidade, contaminam as águas e os alimentos.

A capacidade do MST para mobilizar pessoas e organizar ocupações de terras diminuiu. O Programa Bolsa Família é apontado como uma das principais causa dessa mudança. Outra causa seria o mercado de trabalho, que se tornou mais favorável à mão de obra menos qualificada, especialmente no setor da construção civil. Concorda com essa avaliação?

A diminuição das ocupações se deve a uma conjugação de diversos fatores. Do lado do latifúndio, houve uma avalanche de capital que foi para agricultura atraído pelos preços das commodities – que dão elevados lucros, aumentam o preço das terras e, com isso, bloqueiam a reforma agrária. Do lado dos trabalhadores, os salários aumentaram nas cidades, o que reforçou o êxodo rural. Há um bloqueio da reforma também no Judiciário e no Congresso, que não consegue nem regulamentar a lei que proíbe trabalho escravo. E tem a inoperância do governo, que abandonou as desapropriações. Os trabalhadores, percebendo que as desapropriações estão paradas, acabam desanimando, pois veem seus parentes ficarem durante cinco, oito anos debaixo da lona preta, esperando por terra, sem solução. Mas tudo isso é conjuntural.

Acha que essa situação é passageira?

Sim. O problema da pobreza do campo e do número de trabalhadores rurais sem-terra não foi resolvido. A retomada da luta, com mais força, é apenas uma questão de tempo.

A presidente Dilma Rousseff deixou claro desde a campanha eleitoral que não está preocupada com a criação de novos assentamentos, como quer o MST. O objetivo dela é reduzir a pobreza, com a elevação dos índices de produção das famílias já assentadas. Como vê isso?

O governo Dilma é hegemonizado pelos interesses do agronegócio. Os setores do governo que ainda defendem a reforma agraria são minoritários. O Estado brasileiro, por meio do Judiciário, do Congresso, das leis e a mídia, é controlado pela burguesia, que usa esses instrumentos para impedir a reforma. Nesse governo, a incompetência e a má vontade política são impressionantes. Há dois anos, durante uma reunião do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, a presidenta nos prometeu que iria priorizar assentamento de famílias sem-terra nos projetos de irrigação do Nordeste, que é onde vivem os mais pobres. Pois bem, há 86 mil lotes vagos nos projetos há existentes, nos quais o governo poderia assentar 86 mil famílias. Mas ninguém toma providências.

Por quê?

Porque, no botim dos partidos, o Ministério da Integração foi gerido a serviço das oligarquias nordestinas.

Como vê a situação dos assentamentos já existentes?

Enfrentam muitos problemas. Um deles é o da moradia. Temos um déficit de mais de 150 mil casas. Também é preciso ampliar os programas de compra direta de alimentos e da merenda escolar, uma conquista obtida durante o governo Lula. Ainda há falta de escolas no meio rural, porque o MEC continua incentivando as prefeituras a levarem as crianças para cidade, com o oferecimento de vans. A presidente Dilma assinou um decreto determinando que os recursos destinados aos assentamentos sejam transferidos diretamente para as famílias beneficiadas, em vez de passarem antes por cooperativas, como acontecia.

Isso não vai enfraquecer as cooperativas e a organização dos assentados? Acha que a medida está relacionada às afirmações de que o MST sobrevivia com o dinheiro repassado às cooperativas?

Isso é irrelevante. Os recursos de crédito nunca passaram por cooperativas e associações. O assentado precisa sempre fazer o contrato direto no banco. A não ser, em raros casos, de existência de cooperativa de crédito rural.

Ao mesmo tempo que se verifica o refluxo das ações na zona rural, aumentam as manifestações urbanas e surgem novas organizações. Como vê isso? O que achou das manifestações ocorridas em junho? Toda mobilização social na política é muito positiva. E o lugar natural do povo participar ativamente da política é a rua. É o lugar para se manifestar, lutar e defender seus direitos e interesses. Vimos as mobilizações com bons olhos e, na maioria das cidades, nossa militância também participou. Elas deram um sinal de que precisamos de mudanças.

Que tipo de mudanças?

Nas áreas de moradia, transporte público, educação, saúde para todos, reforma agrária. Para fazer as mudanças, porém, precisamos de uma reforma política, que garanta a representatividade do povo na administração do Estado. A política foi sequestrada pelo financiamento privado das campanhas, que deixa todos os eleitos reféns de seus financiadores. Por isso, nós, dos movimentos sociais, estamos pautando a necessidade de lutarmos por uma reforma política, que democratize a forma de eleger os representantes.

É possível fazer a reforma com esse Congresso?

Claro que não. Diante disso, estamos articulados numa grande plenária nacional de movimentos populares e entidades da sociedade para lutarmos por uma constituinte soberana e exclusiva, convocada para promover a reforma política. Durante todo esse ano vamos fazer um mutirão de debates e na semana do 7 de Setembro faremos um plebiscito popular, para que o povo vote e diga se quer ou não uma assembleia constituinte.

“Tem de quebrar a ordem”, diz Haddad sobre a Cracolândia

20 de janeiro de 2014

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Patricia Faermann, via Jornal GGN

O novo projeto do prefeito Fernando Haddad para acabar com a Cracolândia teve resultado rápido e, proporcionalmente, foi motivo de inúmeras críticas. O plano foi oferecer casa, comida e emprego às cerca de 300 pessoas que viviam ali. De 200 barracos, apenas 4 não quiseram sair, mas logo foram convencidos.

“Criar condições é parte do tratamento”, resumiu Haddad em entrevista ao Jornal GGN.

Seguindo o esboço do que se traduz hoje em medicina atualizada, na defesa de que um tratamento adequado de saúde inclui necessariamente múltiplas frentes, tanto em contexto social, educação, perspectivas de trabalho e habitação, foi preciso uma união de diferentes secretarias para tocar o Projeto “De Braços Abertos”.

A estratégia foi remover os pilares da vulnerabilidade. “Primeira coisa que precisa ser registrada é o seguinte: o homem é a sua circunstância. Então, nós estamos mudando as circunstâncias dessas pessoas”, explicou o prefeito.

A Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social cuidou de fazer a abordagem, conversar e auxiliar na retirada dos moradores da pequena favela. A Coordenação de Subprefeituras e a Segurança Urbana criaram as táticas para que tudo ocorresse de forma ordenada.

A Secretaria de Trabalho e Empreendedorismo foi responsável por integrar os dependentes químicos à Frente de Trabalho, dando-lhes uniformes e auxílio financeiro de R$15 por dia para atividades de zeladoria e limpeza. Em processo de identificar suas profissões originais, terão cursos de capacitação profissional, de acordo com vontade e aptidão.

A Saúde fará um trabalho de triagem, com cuidados médicos, exames de sangue e aplicação de vacinas. Psiquiatra, enfermeiro, psicólogo e terapeuta ocupacional criarão um plano individual de recuperação para cada adicto, por meio do Centro de Apoio Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD).

Esse tratamento opcional inclui oficinas terapêuticas, medicamentos, psicoterapia e atendimento em grupo, desintoxicação ambulatorial e, se necessário, leitos de internação. Diariamente, um profissional de saúde visitará os hotéis dos participantes.

“Você tem que mudar, você tem que quebrar a ordem. Aquela ordem [da Cracolândia] não admite recuperação”, disse Haddad.

Tratamento da dependência

O psiquiatra e coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Escola Paulista de Medicina da Unifesp, Dartiu Xavier da Silveira, explicou que há duas frentes para agir sobre a dependência química.

A primeira é uma herança da política norte-americana da década de 70 de guerra às drogas, polarizada em cima de que ela é a causa de todos os problemas. “Os Estados Unidos, que foi o grande patrocinador dessa guerra, fez uma avaliação muito séria e concluiu a sua ineficácia”. A outra, nascida na Europa, enxerga a droga como “sintoma de algo que não está bom no indivíduo, ou na sociedade”, definiu.

“O problema é que apesar de o Ministério da Saúde ter diretrizes nessa linha mais humanista, a gente tem visto o governo atravessar o próprio Ministério e tomar medidas de apoio à internação compulsória, com medidas coercitivas, que faz uma leitura deturpada dessa situação social. Falta de cidadania, de abandono total, é um prato cheio para a droga florescer. Então a droga é consequência, não causa. Essa é a grande constatação”, completou.

O psiquiatra analisa a interpretação do que é resultado em medidas públicas no assunto. De acordo com ele, qualquer intervenção tem uma taxa de sucesso de 35%, no máximo. Ou seja, 65% não terão abstinência.

“A partir daí, existem duas estratégias: ou abandona, deixa na rua, se drogando e morrendo; ou a maneira europeia, que é a redução de danos – ainda que não consiga parar de usar drogas ou que recaia, existe formas de consumo menos prejudiciais, que permite com que você trabalhe, tenha família, sociabilidade”, explicou.

Histórico

Tudo começou há 6 meses, com estudos da prefeitura. Depois da inserção de Equipamento Público dentro da Cracolândia, em julho do ano passado, viram que era necessário trazer os moradores da pequena favela para a sala de reuniões da prefeitura.

Naquela mesa de mais de 15 cadeiras, os dependentes químicos sentaram-se com Haddad, foram ouvidos e de lá saiu um pacto. “O acordo com eles é o seguinte: acabou a Cracolândia”, contou o prefeito.

“Só o que aconteceu nesses 3 dias é o suficiente para chamar a atenção sobre essa mudança de paradigma. Nós removemos 300 pessoas da rua sem um gesto de violência”, falou.

“Coerção não leva a nada. Aquilo é medida higienista, de limpeza, que orna com uma limpeza étnica, porque vai excluir ou aprisionar os pobres e os negros. Porque os ricos brancos vão ficar nos seus apartamentos, usando drogas, ou no máximo numa clínica de alto luxo”, disse o psiquiatra.

***

Assista à entrevista com o prefeito Fernando Haddad:

Fernando Haddad: “Minha métrica do sucesso não é a reeleição.”

6 de janeiro de 2014
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“Posso te garantir uma coisa: se no Brasil for feito o trabalho que a controladoria do município fez, de cruzamento de dados patrimoniais, com declaração de Imposto de Renda, uma parcela da Casa Grande seria encarcerada. Pode ter certeza.”

Ao fim do primeiro ano de mandato, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, defende suas medidas polêmicas e credita à luta de classes as derrotas sofridas na administração.

Carla Jiménez e Talita Bedinelli, via El País e lido no SQN

São dez e meia da manhã do último dia de 2013 quando o prefeito petista Fernando Haddad, 50, recebe a reportagem do El País na sede da Prefeitura de São Paulo, no centro da cidade. O semblante de esgotamento e o par de tênis nos pés permitiriam confundi-lo, facilmente, com um maratonista da São Silvestre, corrida que naquele momento passava pela porta da administração municipal. Mas o aparente cansaço do administrador da maior cidade da América Latina tem outras causas. É o resultado de um ano intenso, permeado por derrotas políticas que devem trazer um impacto significativo nas finanças e nos investimentos de 2014.

Em junho, uma série de protestos contra o aumento de 20 centavos na tarifa de transporte público ganhou força depois de uma violenta repressão policial. Sob pressão popular, Haddad e o governador Geraldo Alckmin (que gerencia o sistema de trens e metrô) anunciaram a volta da tarifa para os 3 reais.

Mas os protestos continuaram e impactaram a imagem de Haddad: o número de pessoas que consideram seu governo bom ou ótimo caiu de 34%, no início de junho, para 18%, em novembro, segundo pesquisa DataFolha. E quando a situação parecia melhorar, veio um novo golpe: ao tentar reajustar o IPTU, imposto que incide sobre os imóveis, Haddad foi barrado pela Justiça após uma ação comandada pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), que tem como presidente Paulo Skaf, provável candidato pelo PMDB nas eleições para o Governo de São Paulo neste ano.

O resultado dos dois golpes foi um congelamento de ao menos 800 milhões de reais que seriam usados pela prefeitura para seus investimentos de 2014. Um impacto definido por um Haddad especialista na doutrina de Karl Marx como a vitória da Casa Grande perante a Senzala, uma referência ao livro do sociólogo Gilberto Freyre, que analisa a formação do Brasil. “Para aqueles que acreditam que o nosso problema de bem estar social é falta de investimento público, [a derrota do IPTU] trará consequências.”

El País: Como é ser prefeito da maior cidade da América Latina?
Fernando Haddad: Uma experiência desafiadora. Mas há também a sensação de que você consegue dar resposta aos problemas, desde que você tenha alguma determinação para mudar a realidade da cidade. Em geral, os prefeitos que deixam uma marca na sua cidade foram os que tomaram as providências que todo mundo sabia que precisavam ser tomadas, mas eram postergadas em função de circunstâncias conjunturais. A questão da mobilidade é clássica no mundo inteiro. Todo mundo sabe que deve priorizar o transporte público, mas tomar a decisão de priorizá-lo é difícil porque incomoda aqueles que estão comodamente utilizando o transporte individual. Já tínhamos anunciado na campanha que faríamos, mas impulsionados pelas manifestações de junho, fizemos em seis meses o que faríamos em quatro anos [com o aumento das faixas exclusivas de ônibus], o que resultou em um incremento na velocidade do ônibus, superior à verificada em Nova York e Paris, que tomaram a mesma decisão.

El País: Mas as pesquisas mostram que pessoas não deixaram o carro em casa, que o número dos que usam ônibus não aumentou muito.
Haddad: Mas deixou de cair. Vinha caindo consideravelmente. Essa mudança não se faz em meses.

El País: Há uma forma de estimular as pessoas a deixarem o carro?
Haddad: É a perseverança. O trânsito em São Paulo piorou menos em 2013 do que em 2012, quando não se investiu um centavo em transporte público. O trânsito aumentou 11% de 2011 para 2012, sem uma faixa, sem um corredor. E de 2012 para 2013, 7%. Óbvio que é uma mudança de cultura, talvez geracional. No meu tempo, o presente de quem entrava na faculdade era um carro. Outro dia, meu filho me disse que pensava em se desfazer do carro, em função dos custos associados. Paga-se muito mais de seguro de carro em São Paulo do que de IPTU.

El País: Esse é um valor percebido por um grupo mais crítico. A população, em geral, ainda não vê assim.
Haddad: Mas os 70% que usam transporte público entendem.

El País: E isso não deveria se refletir em apoio ao seu nome?
Haddad: Vamos dissociar essas duas coisas. O apoio à medida [implementação das faixas] foi medido por dois institutos de pesquisa, e está na casa dos 90%. Uma coisa é aprovar a medida, outra coisa é aprovar o político. Estamos num ano muito atípico do ponto de vista de aprovação aos governantes, de maneira geral. A aprovação da nossa reforma educacional é na casa dos 90%. De mobilidade, 90%. Se perguntarem sobre as medidas para combate à corrupção, certamente vai ser de 100%. E isso tudo pode não se refletir em apoio político.

El País: Isso é uma sina em São Paulo, onde poucos prefeitos reelegeram sucessores?
Haddad: É um contexto geral de mau humor em relação à política, que é mais grave em São Paulo. Porque a cidade vive uma crise financeira há 20 anos. São Paulo está investindo menos da metade das capitais do Sudeste [Belo Horizonte, por exemplo, investe três vezes mais]. Não tem como. Tem uma hora que a política tem que fazer a concessão à matemática.

El País: O problema é a dívida de 56 bilhões de reais, que não dá margem para investimento?
Haddad: Não é só isso. Tem os precatórios. O Supremo declarou inconstitucional o parcelamento dos precatórios, isso já está se refletindo nas contas municipais. Tem um problema novo, o do congelamento da tarifa de ônibus. E um mais novo ainda, que é a suspensão de uma prática comum a todos os governantes que me foi sonegada, que é a atualização da planta de valores do IPTU.

El País: E por que o senhor acha que, agora, pela primeira vez, foi negada a atualização do IPTU?
Haddad: Eu não sei.

El País: É uma questão política?
Haddad: Não sei. Eu acompanho finanças públicas desde criancinha, vamos dizer. Eu nunca vi uma decisão dessa, de negar uma prefeitura de atualizar a base de cálculo.

El País: Está claro, há um problema…
Haddad: Não há um problema. Havia um, agora são quatro [risos].

El País: O seu cenário é muito pessimista pelo jeito. Quais são as soluções possíveis? Reajuste da tarifa de ônibus em junho?
Haddad: Antes das manifestações de junho, eu já havia dado uma declaração de que eu era a favor da municipalização da Cide [Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico], um tributo que incide sobre a gasolina, para baratear o preço da mobilidade em São Paulo. No mundo inteiro discute-se isso. Em Bogotá, por exemplo, tem uma espécie de Cide municipal. O prefeito tributa a gasolina e subsidia o transporte público. Eu entendo que 2014 é um bom ano para discutir esse tema, em termos nacionais.

El País: Mas em um ano eleitoral?
Haddad: Justamente. É em ano eleitoral que se discute esse tipo de coisa. Se o Brasil quer o barateamento da tarifa, então temos que discutir a fonte desse barateamento. Por que você vai prejudicar outros setores do governo para baratear o transporte? Saúde, educação, moradia? Essa pergunta será feita aos candidatos. Ninguém que é pessimista pode entrar na política. A política já é tão difícil sendo o que ela é. O pessimista tem de fazer outra coisa… Tem que ser jornalista [risos].

El País: Mas a prefeitura teve que congelar boa parte da verba por mais um ano. Como implementar os projetos?
Haddad: A suspensão da tarifa e a falta de correção da tabela do IPTU implicam na redução do investimento na cidade. Mal ou bem, essas decisões foram tomadas. Foi o resultado do campo de forças que atuou sobre a cidade. Uma cidade que já investe metade do que as demais capitais do Sudeste investem vai ter mais restrições de investimentos. Esta cidade que pede mais creche, mais qualidade do transporte, mais leitos hospitalares, que se façam mais cirurgias eletivas, precisa encontrar um padrão de financiamento. Isso passa por muitas ações, pela repactuação da dívida do município com a União, que ao contrário do que se vem retratando, está bem encaminhada.

El País: Mas existe um consenso no mundo econômico de que repactuar a dívida da prefeitura com a União pode gerar um endividamento e prejudicar o ajuste fiscal do país.
Haddad: Discordo desse entendimento. Primeiro, porque não tem impacto fiscal no curto prazo. Segundo, nós estamos buscando um reequilíbrio do contrato. Não é farra fiscal. A União não pode enriquecer às custas dos entes cujas dívidas foram renegociadas. Não posso pagar uma dívida de 17% [de juros] para a União, enquanto ela rola as dívidas dela a 10%. Numa Federação, um ente não pode lucrar às custas de outro. Acho incrível um economista sério defender um contrato totalmente desequilibrado como este. O que estão dizendo é o seguinte: já que você assinou um contrato infeliz, paciência. Você vai colaborar com o esforço fiscal da nação porque você fez um mau negócio. Mas esse negócio foi feito entre o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-prefeito Celso Pitta (nos anos 2000). É uma excrescência do ponto de vista jurídico.

El País: O senhor acredita, então, que isso pode mudar neste ano?
Haddad: Eu confio na regra de bom senso. Não há como prevalecer o entendimento de que um contrato totalmente desequilibrado deva ser mantido porque um grupo de fundamentalistas entende que isso coloca em risco a estabilidade financeira do país. Estamos falando de um município!

El País: Mas que é o maior município do país…
Haddad: O que é pouquíssimo perto da União.

El País: Mas a mudança do indexador afetaria outros municípios e estados.
Haddad: Mas é justo que a mudança do indexador ocorra. Não é razoável imaginar que Alagoas, por exemplo, um dos Estados com os piores indicadores sociais, talvez do mundo, subsidie a União. Esquece São Paulo. Para Alagoas é justo?

El País: Mas, de qualquer forma, ainda estamos falando de uma expectativa de mudança. E, de concreto, ainda não tem verba.
Haddad: Quando uma bola está na marca do pênalti, tenho uma boa expectativa de que vai sair o gol.

El País: Tem o Roberto Baggio para mostrar que ela sempre pode ir para fora…
Haddad: Óbvio que pode. Mas com uma bola na marca do pênalti, uma expectativa de gol não é otimismo exacerbado.

El País: Mas o senhor conta com mais verbas da União? Ela já aumentou em 3.000% para os investimentos na saúde na sua gestão…
Haddad: São Paulo se mantinha isolado. Nós estamos aderindo a todos os programas federais. Na área da saúde, educação, cultura, mobilidade, do Minha Casa, Minha Vida. Agora, óbvio que nós temos constrangimentos. Quando o programa federal exige contrapartida, o aumento da arrecadação própria do município é essencial para honrar essa contrapartida. Por isso a nossa preocupação com o IPTU é tão grande.

El País: Como assim?
Haddad: Porque ao contrário do que a Fiesp alardeou, nós não vamos perder só 800 milhões de reais. Aliás, 800 milhões só não é dinheiro para a Fiesp. Para São Paulo é muito dinheiro. Nós não vamos perder só os 800 milhões, vamos deixar também de fazer obras que exigem a contrapartida. Por exemplo: a União paga a construção de creche para os municípios. Só que, para isso, eu preciso de terreno. Mas como não tenho terreno público em São Paulo, eu preciso desapropriar. E se eu não tenho o dinheiro próprio para a desapropriação, o dinheiro federal não vem. O principal problema são os casos em que preciso desapropriar, como o Minha Casa, Minha Vida, e os corredores de ônibus.

El País: Houve bairros com aumento de 29%, como no caso da Vila Mariana (classe média alta), e redução de 10% em bairros como Guaianazes (de baixa renda). Não se poderia ter mantido esses bairros sem desconto, para que outros não tivessem tanto reajuste?
Haddad: A planta genérica de valores não é uma peça política. É uma peça técnica, elaborada na secretaria de Finanças. Uma lei municipal exige que no primeiro ano de mandato todo prefeito atualize. Eu estava cumprindo a lei. Eu estava fazendo o que todos os prefeitos fizeram no seu primeiro ano. É justo atualizar a base de cálculo do tributo. Se uma jurisprudência como essa se firma, o que eu não acredito, vai ter repercussões em todos os municípios.

El País: Não faltou diálogo, sabendo ainda que o presidente da Fiesp, Paulo Skaf, pode se candidatar a governador em 2014?
Haddad: Não faltou diálogo, sobrou oportunismo. É minha opinião sincera.

El País: No mundo da política não existem bondades, o jogo não é fraternal…
Haddad: Debate sobre tributo no Brasil sempre se ganha a posteriori, a priori é muito difícil ganhar. Quando prometeram que os preços das mercadorias iam cair com o final da CPMF (tributo criado para financiar a saúde, extinto posteriormente), lembra? Nós estamos esperando até agora. Os empresários embolsaram lucros maiores e a saúde pública foi prejudicada.

El País: Já que estamos falando de lucro… O senhor deu uma declaração que gerou polêmica recentemente. Disse que a Casa Grande, representada pela Fiesp, venceu a Senzala, que é a população pobre de São Paulo. O senhor acha que há uma luta de classes?
Haddad: Veja bem, nós estamos num dos países mais desiguais do mundo. Não sei por que lembrar isso ofende alguém. E combater as desigualdades é equilibrar a contribuição que cada um dá para a sociedade se emancipar das mazelas materiais que sofre. Não vejo ofensa nisso.

El País: É difícil ter uma visão mais marxista numa sociedade tão conservadora quanto São Paulo?
Haddad: Não estou falando de marxismo aqui. Estou falando de Estado de bem-estar social. Como é que São Paulo admite conviver com a miséria que ainda existe aqui, a cinco quilômetros do centro? Como se admite conviver com tanta miséria ainda?

El País: Mas também existe um paulistano que rejeita a miséria, que quer uma cidade mais humana. Como o senhor percebe isso?
Haddad: Sempre fui da opinião que São Paulo não é uma cidade conservadora, é uma cidade onde atuam fortemente forças conservadoras. A cidade é melhor do que parece. Agora, muitas vezes esse desejo, essa vontade de mudança, fica subordinada aos donos que impedem essas forças de se manifestarem mais livremente. Por isso que é uma cidade tensa. Ela quer aflorar, mas não deixam. É o cabresto da Casa Grande. [risos]

El País: Existe uma ação da prefeitura, com apoio consensual, que é a Controladoria Municipal. O senhor falou em trabalhar leis internacionais para punir as construtoras, envolvidas na máfia dos fiscais. Como esse assunto foi encaminhado? No Brasil, não se pune o corruptor.
Haddad: Ainda há muitas distorções que estão sendo corrigidas. Entra em vigor em janeiro uma lei que permite a multa administrativa severa dos corruptores. É uma lei nacional, que pretendemos aplicá-la exemplarmente em São Paulo. Há um projeto de lei desde 2004 no Congresso Nacional, encaminhado pelo ex-presidente Lula, que criminaliza o enriquecimento ilícito. Hoje isso não é crime. Posso te garantir uma coisa: se no Brasil for feito o trabalho que a controladoria do município fez, de cruzamento de dados patrimoniais, com declaração de Imposto de Renda, uma parcela da Casa Grande seria encarcerada. Pode ter certeza.

El País: O combate à corrupção resvalou no seu governo, com o nome do Antônio Donato (secretário de Governo que pediu afastamento ao ser apontado como receptor de propina no esquema de fiscais da prefeitura com construtoras). Como o senhor vê isso?
Haddad: Só três pessoas podiam prejudicar essa investigação até a sua conclusão exitosa: eu, o controlador e o Donato. Éramos as únicas três pessoas da prefeitura que, por dever de ofício, tinham que acompanhar, desde março, o passo a passo das ações conduzidas. Teve uma determinada circunstância, num determinado dia, que foi crucial. O controlador chegou para mim e para o Donato e falou: “Olha, tá mapeado o problema.” Expôs todo o problema, que veio a ser conhecido seis meses depois. Disse: “Nós temos duas condutas a tomar, ambas com amparo legal. Um processo administrativo disciplinar por enriquecimento ilícito em que esses servidores serão demitidos. E outro muito mais delicado: levar o problema para o Ministério Público, tentar uma ação judicial que abra uma investigação com autorização legal, com quebra de sigilo telefônico, bancário, fiscal e todas as consequências inerentes a essa decisão”. Qual foi a posição minha e a do Donato? Vamos pelo caminho mais difícil, mas que vai resultar na verdade, em saber como essas pessoas acumularam até aqui 80 milhões de reais em patrimônio pessoal.

El País: E por que o senhor acha que o nome dele foi envolvido?
Haddad: Ah, aí tem que perguntar para quem envolveu… Eu estou dando um testemunho de quem presenciou a cena. A decisão foi tomada ali. Naquele minuto. Ninguém ali piscou. Muita gente não faria isso.

El País: Foi uma perseguição ao senhor?
Haddad: Não, não lido com esse conceito. Eu só sou uma pessoa, até pela minha formação, que acredita que você explicando os dilemas que o administrador público vive, isso ajuda a empurrar para a direção correta a cidade. Possivelmente alguém consideraria melhor ir no caminho do menor risco para a administração. Nós optamos por um outro caminho. Por um jeito que é mais pedagógico, mais transparente e que envolve mais riscos.

El País: Quer dizer, o grande mérito da Controladoria foi esse cruzamento de dados…
Haddad: Em 90 dias desbaratamos uma quadrilha que atuava havia oito anos! Agora, veja que curioso, a mentalidade é tão distorcida no nosso país, que boa parte da imprensa local começou a me criticar por não ter feito os cálculos políticos da minha decisão. Como se a ética tivesse de ser subordinada ao cálculo político. E muitos prefeitos, que estavam interessados em criar as suas controladorias, recuaram diante da reação da imprensa à minha suposta ingenuidade. As distorções morais estão em todo lugar.

El País: É verdade que o ex-presidente Lula chamou o senhor para conversar sobre o desgaste dessa ação na aliança com o PSD, do ex-prefeito Gilberto Kassab, que é importante para a reeleição da Dilma?
Haddad: Nunca. Tem reuniões das quais eu participei que eu fico sabendo pela imprensa [risos].

El País: E na época dos protestos? Houve uma crítica de que a prefeitura demorou para atuar. Se disse que o ex-presidente Lula estava insatisfeito com a sua postura. É verdade?
Haddad: Sobre esse assunto eu conversei com o presidente Lula. E ele sempre entendeu o problema como um problema que não era local. Ele foi um dos primeiros a fazer essa afirmação: “Não é a tarifa”.

El País: E hoje como o senhor avalia o que aconteceu em 2013 no país? Eu queria a resposta do cientista político, não do prefeito.
Haddad: Eu acho que o estopim pode ter sido a tarifa. Deixa eu fazer algumas considerações, já que você está perguntando para um cientista político você tem que me dar tempo [risos]. A minha campanha eleitoral se baseou numa tese que se provou vencedora. Mas que explica muito, na minha opinião, as manifestações de junho. Eu dizia que a vida do brasileiro tinha melhorado da porta de casa para dentro. Mas não tinha melhorado da porta de casa para fora. Quis dizer que a vida do trabalhador: renda, acesso à crédito, acesso ao consumo, à educação, à saúde… tudo tinha melhorado, da porta para dentro. Mas que os serviços públicos, da porta para fora, não tinham acompanhado esse ritmo de mudança. A tarefa nossa, portanto, seria essa. Tínhamos que melhorar para o usuário do SUS [Sistema Único de Saúde], para o usuário de escola pública. Acho que junho é um pouco o resultado disso. Com um ingrediente, na minha opinião, que explica muito a forma que a coisa assumiu: a violência policial.

El País: A violência foi o elemento catalizador?
Haddad: Eu acho que ali houve uma resposta da juventude, que disse: “Nós não vamos aceitar um retrocesso democrático no país e se formos para a rua para nos manifestar é um direito nosso”. Acho que aquela quinta-feira, 13 de junho, é um turning point. Existia um movimento [pela redução da tarifa] que não era novo, que não tinha grande expressão e, de repente, uma violência muito grande resultou numa situação inédita.

El País: A Polícia Militar foi inábil?
Haddad: Eu entendo que o Estado ainda não estava preparado do ponto de vista da sua organização, da formação democrática que as forças de segurança têm que ter. Nós saímos da ditadura militar, o Brasil está avançando enormemente na democracia, é uma das democracias mais vibrantes do mundo. Mas eu entendo que do ponto de vista da segurança pública existe ainda um componente mal resolvido de interface com a política, de se criminalizar protesto, por exemplo. Isso é uma coisa muito comum em uma ditadura, onde se criminaliza os opositores do regime. Numa democracia não se aceita. O que me pareceu é que houve uma reação muito forte da sociedade em relação a esse resquício do período autoritário.

El País: O senhor acha que a polícia deve ser desmilitarizada?
Haddad: Eu não estudei esse assunto. A tendência mundial é a da desmilitarização. Isso é uma tendência no mundo e quanto mais evoluído o país, mais essa é a regra.

El País: Agora, olhando quase seis meses depois, teria alguma coisa que o senhor teria feito diferente em relação às manifestações? A prefeitura demorou para agir?
Haddad: Demorou-se muito tempo? Acho que não. Na quinta-feira, 13 de junho, houve aquele evento, aquela enorme repressão e na quarta-feira foi feito o anúncio.

El País: Mas as manifestações já tinham sido reprimidas com violência outras vezes antes, tudo vinha crescendo…
Haddad: Antes daquela quinta-feira, as vítimas retratadas pela própria imprensa estavam mais do lado da polícia. A foto da quarta-feira, 12 de junho, em todos os jornais, é a de um policial sangrando e não a de um manifestante ferido. Não estava claro o que de fato estava acontecendo. Na quinta-feira muda tudo. O que eu vi depois de quinta é que o debate ali estava completamente interditado. Já não era possível debater o assunto. Ainda tentamos. Mas ali já não havia mais nenhum espaço para o debate.

El País: Uma das soluções que vieram foi a Comissão Parlamentar de Inquérito do ônibus (quer seria feita na Câmara Municipal, pelos vereadores, para abrir as planilhas de gastos do transporte público). Isso andou muito pouco.
Haddad: Eu não vejo condições de um aprofundamento desse tipo de debate numa CPI. CPI em geral é muito boa para apurar uma denúncia. Um fato concreto. Uma auditoria, na minha opinião, só uma auditoria internacional licitada como nós vamos fazer. Estamos no meio do processo de licitação. Como a sociedade está demandando mais transparência, resolvi que não vou licitar o sistema, sem antes auditar.

El País: Vai constar no critério de preferências mais linhas oferecidas?
Haddad: Primeiro lugar, na minha opinião, é o custo disso tudo. Quando as pessoas falam: “Corta do empresário”, vamos ver. No primeiro ano da minha primeira administração reduzimos o desembolso em 500 milhões de reais em 2013. A mesma prefeitura está atuando na renegociação dos contratos com os fornecedores, renegociação da dívida com a União, negociação dos precatórios, planta genérica de valores… Fazemos um grande esforço de saneamento para recolocar São Paulo na liderança do investimento público per capita do país.

El País: É possível ter tarifa zero no transporte público?
Haddad: Vamos fazer uma pergunta diferente: é possível aumentar o subsídio à tarifa até o ponto de chegar a 100%? A minha opinião é que sim, se tiver uma fonte de financiamento.

El País: Que seria…
Haddad: A municipalização da CIDE. Se os prefeitos forem autorizados a tributar a gasolina para subsidiar a tarifa, você poderia avançar no subsídio e diminuir o preço da tarifa no bolso do trabalhador.

El País: Vai ter aumento de ônibus em 2014?
Haddad: Não está planejado.

El País: Isso é não?
Haddad: Isso é não.

El País: Estamos falando de arrumar a casa e, talvez, colher os frutos dessa arrumação muito tempo depois de quatro anos. Todas essas questões demoram um tempo até que se tenha verba para fazer o que realmente aparece aos olhos públicos. Não é um risco político?
Haddad: É um risco político que eu decidi assumir, conscientemente. Eu vou te dar um exemplo da minha passagem pelo Ministério da Educação: seguramente, nós fizemos a maior reforma educacional da história. Mas nós ficamos dois anos discutindo roubo de uma prova do Enem, um livro que supostamente ensinava o brasileiro a falar errado… Ou seja: do que nós estamos falando? Você promove uma das maiores reformas, inclusive reconhecida pela Unesco, pela Unicef. E nós ficamos presos a esses acontecimentos que a imprensa julgou como os mais relevantes a serem discutidos. É difícil a comunicação.

El País: No longo prazo esses esforços podem ser percebidos? O PT tem tempo de esperar esse longo prazo em São Paulo?
Haddad: Veja bem. São Paulo precisa ser bem sucedida pela métrica que me interessa. A métrica que me interessa não é a reeleição. Você pode ser mal sucedido e se reeleger. Conheço vários prefeitos ruins que foram reeleitos. A minha métrica do sucesso não é a reeleição. É um projeto para a cidade. A cidade tem um projeto hoje? Não tem. Se essa cidade em 2016 tiver um projeto… E quando eu digo projeto não é o prefeito ter um projeto. É a cidade ter um projeto. Para mim, essa é a vitória da gestão. Para mim, o que significa mudar São Paulo é uma combinação virtuosa entre o projeto e o tempo. É um risco muito grande? É um risco muito grande.

El País: Mas adianta ter um projeto e em 2016 não conseguir a reeleição e entrar um outro prefeito que vai assumir outro projeto?
Haddad: Foi o que aconteceu com a Marta [Suplicy]. Por que a Marta, à maneira dela, vinha desenvolvendo uma visão de cidade que estava se impondo e que é diferente da São Paulo que nós conhecemos hoje. Na minha opinião, a cidade seria outra. Até porque eu participei da gestão dela e vi que estava se constituindo uma coisa nova em São Paulo. E ela perdeu.

El País: E o senhor não teme isso?
Haddad: Temo. Mas qual a alternativa que eu tenho? Maquiar? Não sei!

El País: A Marta foi muito bem aceita na periferia e rejeitada nos bairros mais ricos. Ela também teve um embate com a classe média, onde está grande parte do conservadorismo. Não existe uma estratégia para trabalhar a conquista da classe média?
Haddad: É difícil você convencer alguém de alguma coisa no primeiro ano de governo. Porque as pessoas não conseguem enxergar. É muito difícil, inclusive, comunicar coisas que estão sendo gestadas ainda. Então, tem que ter muita paciência para suportar esse processo. Trabalhar calado, aguentando e acreditar que tem uma coisa que vai desabrochar. Exige um exercício incrível.

El País: A gente vê que a aposta do Kassab para a reeleição foi bem simples. Ele investiu na Cidade Limpa, investiu na zeladoria…
Haddad: A do [José] Serra foi mais simples ainda! Se desincompatibilizou depois de um ano e se candidatou a governador… [risos]

El País: Não seria mais fácil essa aposta mais simples?
Haddad: É mais fácil! Mas, mutatis mutandis, você está me fazendo o tipo de pergunta que me causava uma certa indignação três meses atrás quando me perguntavam: “Mas por que você está combatendo a corrupção desse jeito. Você não está percebendo que isso está trazendo prejuízo para o teu governo?”. É o mesmo tipo de cálculo, entendeu. Mas é o jeito que eu sei fazer.

El País: Mas o senhor foi uma aposta do PT para tentar se renovar, trazer quadros novos, já que há preconceito da classe mais conservadora paulista com a questão sindical, trabalhista, historicamente ligada ao partido. O senhor é um intelectual, professor da USP. O ministro da Saúde Alexandre Padilha, que deve ser o candidato ao Governo de São Paulo neste ano, vem com o mesmo perfil…
Haddad: Não tem ninguém que se pareça mais com um tucano do que eu. Branco, filho de imigrante, bem sucedido academicamente, três diplomas. E o que quer dizer isso? Na hora em que os interesses estão em jogo, é de que lado você fica que importa. Quer mais do que a Marta? Loira, de olhos azuis, quatrocentona, poliglota, estudou na França, nos EUA. O currículo da Marta dá de dez no de qualquer tucano. E daí? Mas ela fez Bilhete Único, CEU na periferia, corredor de ônibus.

El País: Foi um ano intenso. O senhor está cansado?
Haddad: Sei lá. Oscila muito tua maneira de ver. Não sei. Já vivi anos difíceis na vida. 2005 foi um ano muito difícil na minha vida, quando assumi o Ministério da Educação. Tive anos na vida privada muito difíceis.

El País: O senhor se arrepende?
Haddad: Não. É um privilégio viver essa experiência.

Ignacio Ramonet: Mais duas horas com Fidel

3 de janeiro de 2014

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Fidel me esperava na entrada do salão de sua casa, uma peça ampla e luminosa aberta sobre um ensolarado jardim. Aparentava estar em estupenda forma.

Ignacio Ramonet, via Carta Maior

Fazia um dia de primaveral doçura, submergido por essa luz refulgente e esse ar cristalino tão característicos do mágico dezembro cubano. Chegavam cheiros do oceano próximo e se ouviam as verdes palmeiras embaladas por uma lânguida brisa. Em um desses “paladares” que abundam agora em La Habana, estava eu almoçando com uma amiga. De repente, tocou o telefone. Era meu contato: “A pessoa que desejavas ver, está te esperando em meia hora. Apressa-te.” Deixei tudo, me despedi da amiga e me dirigi ao lugar indicado. Ali me aguardava um discreto veículo cujo chofer guiou de imediato rumo ao oeste da capital.

Eu tinha chegado a Cuba quatro dias antes. Vinha da Feira de Guadalajara (México) onde estive apresentando meu novo livro Hugo Chavez: Mi primera vida – conversaciones con el líder de la revolución bolivariana. Em La Habana, se celebrava com imenso êxito, como cada ano por essas datas, o Festival do Novo Cinema Latino-americano. E seu diretor Iván Giroud teve a gentileza de me convidar para a homenagem que o Festival desejava prestar a seu fundador Alfredo Guevara, um autêntico gênio criador, o maior impulsionador do cinema cubano, falecido em abril de 2013.

Como sempre, quando pouso em La Habana, havia perguntado por Fidel. E, por intermédio de vários amigos comuns, havia transmitido minhas saudações. Fazia mais de um ano que não o via. A última vez tinha sido em 10 de fevereiro de 2012 no marco de um grande encontro “pela paz e a preservação do meio ambiente”, organizado à margem da feira do livro de La Habana, no qual o Comandante da revolução cubana conversou com uma quarentena de intelectuais.

Foram abordados, naquela ocasião, os temas mais diversos, começando pelo “poder midiático e a manipulação das mentes” do qual me tocou falar em um tipo de palestra inaugural. E não me esqueço da pertinente reflexão que Fidel fez ao final de minha exposição: “O problema não está nas mentiras que os meios dominantes dizem. Isso não podemos impedir. O que devemos pensar hoje é como nós dizemos e difundimos a verdade.”

Durante as nove horas que durou essa reunião, o líder cubano impressionou seu seleto auditório. Demostrou que, já com 85 anos de idade, conservava intacta sua vivacidade de espírito e sua curiosidade mental. Intercambiou ideias, propôs temas, formulou projetos, projetando-se para o novo, para a mudança, para o futuro. Sensível sempre às transformações em curso do mundo.

Quão diferente o encontraria agora, dezenove meses depois? Me perguntava a bordo do veículo que me aproximava dele. Fidel havia feito poucas aparições públicas nas últimas semanas e havia difundido menos análises ou reflexões que em anos anteriores.

Chegamos. Acompanhado de sua sorridente esposa Dalia Soto del Valle, Fidel me esperava na entrada do salão de sua casa, uma peça ampla e luminosa aberta sobre um ensolarado jardim. O abracei com emoção. Aparentava estar em estupenda forma. Com esses olhos brilhantes como estiletes sondando a alma de seu interlocutor. Impaciente já de iniciar o diálogo, como se tratasse, dez anos depois, de prosseguir nossas longas conversações que deram lugar ao livro Ciem horas com Fidel.

Ainda não havíamos sentado e já me formulava uma infinidade de perguntas sobre a situação econômica na França e a atitude do governo francês… Durante duas horas e meia, falamos de tudo um pouco, pulando de um tema a outro, como velhos amigos. Obviamente se tratava de um encontro amistoso, não profissional.

Nem gravei nossa conversação, nem tomei nenhuma nota durante o transcurso da conversa. E este relato, além de dar a conhecer algumas reflexões atuais do líder cubano, só aspira responder a curiosidade de tantas pessoas que se perguntam, com boas ou más intenções: como está Fidel Castro?

Já disse: estupendamente bem. Perguntei-lhe por que ainda não havia publicado nada sobre Nelson Mandela, falecido havia já mais de uma semana. “Estou trabalhando nisso, declarou, terminando o rascunho de um artigo. Mandela foi um símbolo da dignidade humana e da liberdade. O conheci muito bem. Um homem de uma qualidade humana excepcional e de uma nobreza de ideias impressionante. É curioso ver como os que ontem amparavam o Apartheid, hoje se declaram admiradores de Mandela. Que cinismo! A gente se pergunta, se ele só tinha amigos, quem então prendeu Mandela? Como o odioso e criminoso Apartheid pode durar tantos anos? Mas Mandela sabia quem eram seus verdadeiros amigos.

Quando saiu da prisão, uma das primeiras coisas que fez foi vir visitar-nos. Nem sequer era ainda presidente da África do Sul! Porque ele não ignorava que sem a proeza das forças cubanas, que romperam a coluna vertebral da elite do exército racista sul-africano na batalha de Cuito Cuanavale [1988] e favoreceram, assim, a independência da Namíbia, o regime do Apartheid não teria caído e ele teria morrido na prisão. E isso que os sul-africanos possuíam várias bombas nucleares, e estavam dispostos a utilizá-las!”

Falamos depois de nosso amigo comum Hugo Chavez. Senti que ainda estava sob a dor da terrível perda. Evocou o Comandante bolivariano quase com lágrimas nos olhos. Me disse que havia lido, “em dois dias”, o livro Hugo Chavez: Mi primera vida. “Agora tens de escrever a segunda parte. Todos queremos ler. Deves isso a Hugo.”, completou. Aí interveio Dalia para comentar que esse dia [13 de dezembro], por insólita coincidência, fazia 19 anos do primeiro encontro dos dois Comandantes cubano e venezuelano. Houve um silêncio. Como se essa circunstância lhe conferisse naquele momento uma indefinível solenidade à nossa visita.

Meditando para si mesmo, Fidel se pôs então a lembrar daquele primeiro encontro com Chavez no dia 13 de dezembro de 1994. “Foi uma pura casualidade, relembrou. Soube que Eusebio Leal tinha convidado ele para dar uma conferência sobre Bolívar. E quis conhecê-lo. Fui esperá-lo ao pé do avião. Coisa que surpreendeu muita gente, incluindo o próprio Chavez. Mas eu estava impaciente por vê-lo. Nós passamos a noite conversando.” “Ele me contou, eu disse, que sentiu que você estava fazendo ele passar por um exame…” Fidel se larga a rir:

“É verdade! Queria saber tudo dele. E me deixou impressionado… Por sua cultura, sua sagacidade, sua inteligência política, sua visão bolivariana, sua gentileza, seu humor… Ele tinha tudo! Me dei conta que estava em frente a um gigante da talha dos melhores dirigentes da história da América Latina. Sua morte é uma tragédia para nosso continente e uma profunda desdita pessoal para mim, que perdi o melhor amigo…”

“Você vislumbrou, naquela conversa, que Chavez seria o que foi, ou seja, o fundador da revolução bolivariana?” “Ele partia com uma desvantagem: era militar e havia se sublevado contra um presidente socialdemocrata que, na verdade, era um ultraliberal… Em um contexto latino-americano com tanto gorila militar no poder, muita gente de esquerda desconfiava de Chavez. Era normal.

Quando eu conversei com ele, há dezenove anos agora, entendi imediatamente que Chavez reivindicava a grande tradição dos militares de esquerda na América Latina. Começando por Lázaro Cárdenas [1895-1970], o general-presidente mexicano que fez a maior reforma agrária e nacionalizou o petróleo em 1938…”

Fidel fez um amplo desenvolvimento sobre os “militares de esquerda” na América Latina e insistiu sobre a importância, para o comandante bolivariano, do estudo do modelo constituído pelo general peruano Juan Velasco Alvarado. “Chavez o conheceu em 1974, em uma viagem que fez ao Peru sendo ainda cadete. Eu também me encontrei com Velasco uns anos antes, em dezembro de 1971, regressando de minha visita ao Chile da Unidade Popular e de Salvador Allende. Velasco fez reformas importantes, mas cometeu erros. Chavez analisou esses erros e soube evitá-los.”

Entre as muitas qualidades do comandante venezuelano, Fidel sublinhou uma em particular: “Soube formar toda uma geração de jovens dirigentes; a seu lado adquiriram uma sólida formação política, o que se revelou fundamental depois do falecimento de Chavez, para a continuidade da revolução bolivariana. Aí está, em particular, Nicolas Maduro com sua firmeza e sua lucidez que lhe permitiram ganhar brilhantemente as eleições de 8 de dezembro. Uma vitória capital que o afiança em sua liderança e dá estabilidade ao processo. Mas em torno de Maduro há outras pessoalidades de grande valor como Elías Jaua, Diosdado Cabello, Rafael Ramírez, Jorge Rodríguez… Todos eles formados, às vezes desde muito jovens, por Chavez.”

Nesse momento, se somou à reunião seu filho Alex Castro, fotógrafo, autor de vários livros excepcionais. Se pôs a tirar algumas imagens “para recordação” e se eclipsou depois discretamente.

Também falamos com Fidel do Irã e do acordo provisório alcançado em Genebra, no último dia 24 de novembro, um tema que o Comandante cubano conhece muito bem e que desenvolveu em detalhe para concluir dizendo: “O Irã tem direito a sua energia nuclear civil.” Para em seguida advertir do perigo nuclear que corre o mundo pela proliferação e pela existência de um excessivo número de bombas atômicas em mãos de várias potências que “têm o poder de destruir várias vezes nosso planeta”.

Preocupa-o, há muito tempo, a mudança climática e me falou do risco que representa a respeito o relançamento, em várias regiões do mundo, da exploração do carvão com suas nefastas consequências em termos de emissão de gases de efeito estufa: “Cada dia, me revelou, moerem umas cem pessoas em acidentes de minas de carvão. Uma hecatombe pior que no século 19…”

Continua interessando-se por questões de agronomia e botânica. Me mostrou uns frascos cheios de sementes: “São de amoreira, me disse, uma árvore muito generosa da qual se pode tirar infinitos proveitos e cujas folhas servem de alimento para o bicho da seda… Estou esperando, dentro de um momento, um professor, especialista em amoreiras, para falar deste assunto.”

“Vejo que você não para de estudar.”, lhe disse. “Os dirigentes políticos, me respondeu Fidel, quando estão ativos carecem de tempo. Nem sequer podem ler um livro. Uma tragédia. Mas eu, agora que já não estou na política ativa, me dou conta de que tampouco tenho tempo. Porque o interesse por um problema te leva a interessar-te por outros temas relacionados. E assim vais acumulando leituras, contatos e, de repente, te dás conta que te falta o tempo para saber um pouco mais de tantas coisas que gostaria de saber…”

As duas horas e meia passaram voando. Começava a cair a tarde sem crepúsculo em La Habana e o Comandante ainda tinha outros encontros previstos. Me despedi com carinho dele e de Dalia. Particularmente feliz por ter constatado que Fidel continua tendo seu espetacular entusiasmo intelectual.